A desconsideração da personalidade jurídica, conforme disposto no artigo 50 do Código Civil de 2002, é um mecanismo legal que visa relativizar a autonomia patrimonial entre os sócios e a pessoa jurídica, com o intuito de coibir fraudes e desvios patrimoniais. Contudo, tal instituto não se destina a imputar responsabilidades patrimoniais a terceiros que não mantenham qualquer vínculo jurídico com as sociedades envolvidas. A hipótese da confusão ou desvio patrimonial, ainda que se apresente, não é suficiente para justificar essa responsabilização.
O cerne da questão reside na interpretação do dispositivo legal que permite a desconsideração da personalidade jurídica, questionando se é viável uma ampliação dessa interpretação que atinja o patrimônio de terceiros, como, por exemplo, filhos de sócios das empresas devedoras, beneficiados por atos que possam ser considerados de confusão ou desvio patrimonial.
No caso em análise, o Tribunal de origem decidiu que os irmãos recorrentes poderiam ser afetados pela desconsideração da personalidade jurídica, apenas pelo fato de os seus pais, sócios de um grupo econômico e também alvo da desconsideração, terem realizado doações de bens imóveis e valores em dinheiro a eles. A responsabilidade dos recorrentes ficou restrita aos bens recebidos a título de doação ou adquiridos com recursos provenientes das doações feitas por seus pais, desde que essas transações ocorreram após o saque do título executivo.
A redação do artigo 50 do CC/2002, tanto na versão anterior quanto na atual, deixa claro que a desconsideração da personalidade jurídica é um instrumento que visa a responsabilização de (i) sócios por dívidas das empresas que administram, (ii) empresas por obrigações de seus sócios e (iii) entidades do mesmo grupo econômico por obrigações de outras. Não há, no entanto, previsão legal que permita a responsabilização de filhos por obrigações dos pais, mesmo quando estes tenham sido alvo da desconsideração para cumprir obrigações de suas sociedades.
Ademais, a caracterização de fraude contra credores requer a propositura de uma ação pauliana, conforme o artigo 161 do Código Civil de 2002. Portanto, é impróprio reconhecer tal fraude incidentalmente em um processo executivo, utilizando normas que regem um instituto jurídico diferente, que é destinado a desconsiderar, de forma excepcional e em situações específicas, a proteção legal que assegura a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios. Os requisitos e procedimentos que regem a desconsideração da personalidade jurídica são distintos das questões envolvidas nas ações que tratam da fraude contra credores.
A desconsideração da personalidade jurídica não deve ser confundida com a ação revocatória falencial ou a ação pauliana. Enquanto a primeira busca reconhecer a ineficácia de um negócio jurídico considerado suspeito, a segunda visa à invalidação de atos praticados em fraude a credores, sendo ambos instrumentos que buscam restituir à massa falida ou insolvente os bens necessários ao cumprimento das obrigações dos credores. Por sua vez, a desconsideração tem como foco a ineficácia relativa da própria pessoa jurídica, em relação a credores que não tiveram seus direitos satisfeitos devido à autonomia patrimonial criada pela constituição da sociedade.
No contexto da ação pauliana, o credor deve demonstrar a ocorrência de certos requisitos para a configuração da fraude, como o evento danoso, o dolo ou conhecimento fraudulento do ato e a anterioridade da dívida, conforme estabelecido no parágrafo 2º do artigo 158 do CC/2002, que estipula que somente os credores existentes na época dos atos podem pleitear sua anulação.
No presente caso, os recorrentes não eram sócios das empresas devedoras nem das demais entidades que compunham o grupo econômico. Eles receberam bens de seus pais antes da propositura da ação e, em parte, antes mesmo do surgimento da obrigação. Por isso, o Tribunal de origem afastou sua responsabilidade pelo débito e determinou a liberação de bens adquiridos por doação ou com recursos oriundos de doações feitas pelos pais, em data anterior ao saque do título executivo. Importante ressaltar que a decisão da Corte não indicou a existência de confusão patrimonial entre as empresas devedoras e os recorrentes, mas apenas entre as empresas do grupo.
A responsabilidade dos recorrentes foi declarada de forma puramente patrimonial, pois a ineficácia das alienações foi reconhecida apenas em relação aos atos realizados após a constituição da dívida. Assim, embora o Tribunal tenha afirmado estar desconsiderando a personalidade jurídica das empresas, no que se refere aos recorrentes, na realidade, reconheceu a ocorrência de uma fraude contra credores, sem, no entanto, seguir o processo legal adequado.
Diante desse panorama, a declaração de ineficácia de alienações de bens, com base em um simples pedido do credor que alega atos fraudulentos realizados antes da propositura da ação, fere o devido processo legal. O Judiciário não pode invocar um instituto jurídico que não é aplicável para o reconhecimento da fraude contra credores.
Em suma, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, conforme delineado pelo artigo 50 do Código Civil de 2002, não tem a finalidade de atribuir responsabilidade patrimonial a terceiros sem vínculo jurídico com as sociedades afetadas, mesmo diante da possibilidade de confusão ou desvio patrimonial que possa sugerir uma fraude contra credores.
Referências:
Código Civil (CC/2002), artigos 50; 158, §2º; 161 e 165.
Lei n. 11.101/2005, artigos 129 e 130.
REsp 1.792.271-SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por maioria, julgado em 1º/4/2025.
Ferretti & Selvaggi Advocacia Empresarial
Reginaldo Ferretti
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