A responsabilidade civil no contexto dos provedores de serviços de aplicação na internet, como o YouTube, levanta questões complexas, particularmente quando se trata da disseminação de vídeos que contenham informações falsas, podendo prejudicar a reputação de empresas, como no caso de uma companhia brasileira difamada. A questão central gira em torno da validade e abrangência de uma ordem judicial específica que determine a indisponibilidade de um conteúdo infrator, considerando se essa ordem deve ser limitada ao território brasileiro ou se sua eficácia pode se estender globalmente sem violar a soberania de outros Estados.
A análise da situação sugere que a implementação de uma ordem judicial que proíbe a veiculação de um vídeo considerado difamatório segundo a legislação brasileira não implica violação da soberania estrangeira, mesmo que sua aplicação tenha alcance global. Essa posição é respaldada pelo crescente reconhecimento na comunidade jurídica internacional da necessidade de enfrentar disputas que transcendem as limitações territoriais tradicionais. Decisões judiciais em diversas jurisdições ao redor do mundo têm demonstrado uma tendência em adotar medidas globais para a indisponibilidade de conteúdos considerados ilegais, refletindo um movimento em direção a uma maior efetividade na resolução de conflitos.
O conceito de ofensa à soberania, conforme delineado na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, refere-se à proteção da soberania nacional frente a decisões estrangeiras que possam impactar o Brasil, e não ao contrário. Em casos anteriores, como nos relacionados ao fornecimento de dados ou conteúdo, o ordenamento jurídico brasileiro já refutava a alegação de violação da soberania de outros países, mesmo quando o acesso e o tratamento de dados ocorriam fora do território nacional.
Antes da promulgação do Marco Civil da Internet (MCI) pela Lei n. 12.965/2014, a extraterritorialidade das decisões judiciais brasileiras já era uma realidade, evidenciada pela busca por garantir a efetividade da jurisdição em um cenário onde a internet poderia ser vista como um espaço sem regulamentação. O MCI trouxe avanços significativos ao consolidar a ideia de jurisdição brasileira de forma transfronteiriça, permitindo que as normas processuais aplicáveis aos provedores de aplicações se estendessem além das fronteiras geográficas, desde que os dados sejam coletados no Brasil.
No caso em questão, uma empresa do setor alimentício foi alvo de difamação ao ser acusada de ter ratos em suas instalações, informação disseminada por meio de um vídeo no YouTube. A ordenação da indisponibilidade do conteúdo apenas no Brasil seria insuficiente, dado que o material continuava acessível em outros países. A alegação de que o judiciário brasileiro não poderia restringir o acesso de usuários estrangeiros a conteúdos considerados infratores segundo a legislação nacional carece de fundamento, uma vez que o provedor de aplicação atua de maneira global ao considerar a legalidade de conteúdos em diferentes jurisdições.
A ordem de indisponibilidade, portanto, fundamenta-se em normas brasileiras e visa resguardar interesses locais, sendo sua aplicação transfronteiriça um reflexo do caráter global da internet, que é definida como um “sistema estruturado em escala mundial”. Mesmo no âmbito do direito internacional, a liberdade de expressão não é uma prerrogativa absoluta e admite limitações quando há necessidade de proteger a honra e a reputação de indivíduos ou entidades, desde que observados critérios como a existência de uma base legal, a finalidade da proteção, a proporcionalidade na decisão e a não discriminação.
A extraterritorialidade das ordens de remoção de conteúdo difamatório se alinha à regra da singularidade de controle sobre publicações abusivas, conforme diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU), que recomendam que a responsabilização civil seja concentrada em um número reduzido de foros. Essa abordagem visa evitar a dupla penalização por publicações que possam ser consideradas infratoras em múltiplas jurisdições, defendendo a ideia de que uma plataforma deve ser responsabilizada em uma única ação judicial.
Legislação Pertinente:
Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), art. 5º, I; e art. 11.
– STJ, 3ª Turma, REsp 2.147.711-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, por maioria, j. 12.11.2024.
REGINALDO FERRETTI
OAB/SP n. 244.074
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